O professor Pasquale Cipro Neto, na sua coluna para a Folha de S.Paulo não só deu uma aula de português, mas de cidadania: “A saída é suas”.
"Ao dizer "nós somos
teu", Vaccarezza fez o possessivo "teu" concordar com o
possuidor - um suposto "tu"."
"As gramáticas dizem
que no padrão culto da língua os possessivos concordam em gênero e número com a
coisa possuída e em pessoa com o possuidor. Em "Sabes bem que tua
reivindicação é...", o possessivo "tua" está no feminino
singular porque "reivindicação" é substantivo feminino singular; a
forma "tua", da segunda do singular, deve-se ao fato de se dar ao
possuidor o tratamento "tu" (da segunda do singular, implícita na
forma verbal "sabes"). É bom
repetir: as observações do parágrafo anterior são válidas quando se toma como
referência o padrão formal da língua. Se "tu" desse lugar a
"você", o possessivo "tua" daria lugar a "sua"
("Você sabe bem que sua reivindicação é...").
E se substituíssemos
"você" por "vocês"? Continuaríamos tendo "sua":
"Vocês sabem bem que sua reivindicação...". Bem, isso se
resolvêssemos levar a cabo uma das possibilidades descritas pelas gramáticas.
Na prática, porém, o que se registra não é isso. Na língua viva, não se
registra o emprego de "seu" ou "sua" quando o possuidor é
da terceira do plural (vocês, eles, elas, os senhores, as senhoras). O que se
registra mesmo é "de vocês", "deles" ou "delas"
("Você sabem bem que a reivindicação de vocês..."). Há ainda o registro
de "vosso" ou "vossa", que, no padrão formal da língua,
ocorre com "vós" ("Vocês sabem bem que vossa
reivindicação...").
Há também o que se
ouvia nas peladas da Mooca e ainda se ouve Brasil afora ("A saída é
suas..."). Nesse caso, o falante faz "suas" concordar com um
"vocês" pensado.
Pois não é que nos
últimos dias o deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) se encarregou de
propagar (ao contrário) os mesmos fundamentos que se veem na frase das peladas
dos meus tempos de infância na Mooca? Num torpedo que mandou para o governador
Sérgio Cabral (PMDB-RJ), Vaccarezza escreveu o seguinte: "A relação com o
PMDB vai azedar na CPI. Mas não se preocupe, você é nosso e nós somos
teu".
Elaiá! Seguindo os
princípios da concordância com a ideia e não com a forma, Vaccarezza usou
"teu", no singular, pensando no governador em si, e não na
"coisa" possuída. A "coisa" possuída, no caso, é a base
parlamentar, a base aliada, o governo ou seja lá o que for. Essa
"coisa" (que, sob certos aspectos, não passa mesmo de uma "coisa")
é nomeada pelo deputado pelo pronome "nós". Ao dizer "nós somos
teu", Vaccarezza fez o possessivo "teu" concordar com o
possuidor (um suposto "tu" -suposto porque a passagem "não se
preocupe" faz pressupor o pronome "você", isso em se tratando do
padrão culto da língua). Bem, o fato é que, por cochilo, distração,
desconhecimento ou seja lá o que for, Vaccarezza escreveu "teu" e não
"teus", como se esperaria numa mensagem escrita (até a penúltima
palavra) no padrão formal da língua... O
mais lamentável disso tudo nem de longe é o cochilo gramatical do deputado; é a
desfaçatez, ou seja, é o fato de ficar escancarado que eles são deles, que A é
de B, que B é de A, e que nem A nem B nem C nem D nem "coisa" alguma
de lá é de nós, é nossa. Em suma, eles não é nosso. É isso."
Pasquale Cipro Neto:
Professor de português desde 1975 e colaborador da Folha de S.Paulo desde 1989.
É também o idealizador e apresentador do programa “Nossa Língua Portuguesa” e
autor de várias obras didáticas e paradidáticas.
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